Abraço bem caro!

Quando começámos o nosso relacionamento eu tinha uma actividade de cidadania/voluntariado para promover/ressuscitar o mercado municipal tradicional de venda de frutas e legumes: alguns sábados calhava-me estar na banca de troca de livros e cd's e de venda de jornais.

Achaste estranho e na primeira oportunidade em que eu aceitei substituir uma colega que estava escalonada e não podia ir tu resolveste ir comigo.

Por um lado não achava que o acompanhamento fosse necessário pois já tinha feito essa actividade sozinha e tinha corrido muito bem, mas por outro fiquei orgulhosa com a tua companhia, orgulhosa da antecipação dos olhares de aprovação que iria receber dos amigos e conhecidos que passassem pela banca e vissem que eu já não estava sozinha pois os amigos preocuparam-se comigo e com a solidão que eu iria enfrentar quando enviuvei sabendo que viveria sozinha numa quinta isolada.

Vestiste o teu blazer tipo Oxford e puseste as melhores calças e os sapatos bem brilhantes, como de costume. Pareceu-me exagerado para a função que íamos desempenhar mas tudo bem. Se te apetecia, a mim era-me indiferente e não haveria problema nenhum.

Mas tu não ajudaste nada. Fui buscar os jornais à papelaria que os fornecia e tu ficaste à espera no carro porque "as minhas costas já não aguentam esses pesos".

Bom... seria simpático teres optado por uma solução intermédia, por exemplo, pegarmos cada um na sua asa do saco e dividirmos o peso pelos dois.

Chegados ao mercados sentaste-te de pernas e braços cruzados numa cadeira a um conveniente metro e meio de distância da banca enquanto eu disponha os jornais, os livros e os cd's nas bancas de forma mais ou menos graciosa para chamar a atenção de quem passasse por ali. 

Vieram algumas pessoas observar os novos livros. Pessoas conhecidas mas daquelas que cumprimentamos com um bom dia ou um olá porque por vezes nem o nome conhecemos, ou se conhecemos, perguntamos pela família e fica por aí a comunicação desenvolvida nesses encontros,

Mas às tantas apareceu um simpático residente de teatro que se tinha envolvido com alguns projectos musicais e poéticos do meu filho mais novo e de cujo filho mais novo eu tinha sido explicadora de matemática. Era um conhecimento diferente cujo encontro requeria um um cumprimento mais pessoal e alargado. Ainda por cima o actor era um pouco exuberante nos cumprimentos que fazia e, erro dos erros, sublinhámos o "há tanto tempo que não o(a) via" com um caloroso abraço.

Nunca mais te calaste com o assunto: "Que falta de nível, nunca tinha assistido a uma coisa assim, o sr. não conseguiu disfarçar que estava louco por ti, se tivesse um buraco tinha-me enfiado nele, todas as pessoas nas outras bancas ficaram a olhar para tremendo despautério, só faltou puxar-te para um canto e saltar-me para cima ali mesmo!"

Estes foram alguns dos mimos que tive que ouvir a propósito de um cumprimento inocente com um abraço

Quando fiz 60 anos fomos a Madrid.

Pareceu-me uma ideia simpática porque era evidente que tu, contra o meu desejo inato de passar o aniversário com a família querias, precisamente afastar-me de o fazer.

O convívio com a minha família foi sempre um sacrifício para ti: "não tenho qualquer tipo de conversa com essas pessoas", "não me meto em casa de ninguém" ou "vamos ficar com a casa invadida de gente que não conhecemos. De certeza que a minha casa não será!" eram os teus argumentos principais para eu não receber ninguém ou para não ir a casa de alguém, mesmo em dias consagrados para festas familiares, por exemplo, aniversários e natais.
Ontem fui convidada por uma amiga que, vivendo no Porto, está de passagem por Cascais, em casa de uma amiga, para ir lá ter com elas.

É claro que, inevitavelmente, dei comigo a pensar: se vivesse contigo o convite nem tinha sido feito.

Porque se alguém, que tu não conhecias, me telefonasse a convidar para algum programa inocente, eu enrolaria e despacharia a conversa com tal velocidade que não daria tempo para ser convidada para nada. Não queria, em seguida, ouvir-me a mim mesma a tentar explicar-te que o convívio com os amigos era fundamental para os nossos neurónios e a receber, em troca, a humilhação do teu 'não' geralmente acompanhado com um despropositado 'ou estás comigo ou estás com os outros, tens que escolher'. E eu, humilhada e envergonhada comigo mesma, escolhia-te a ti, Vá lá saber-se porquê!

Um dia, no meio de uma discussão feia, em que eu afirmava mais uma vez que o meu amor por ti era de tal nível que tinha optado por não ter quaisquer amigos, não ir a casa de ninguém , não aceitar convites de ninguém, pois sabia de antemão que isso te ia perturbar e que farias tudo para que eu não contactasse mais com essa pessoa, tu gritaste: "Tem piada: nunca vi ninguém convidar-te para nada!"

Claro que não vias, porque eu não deixava que isso acontecesse para não ter que ouvir os teus comentários tontos acerca de quem invade a privacidade dos outros enfiando-se em casa deles. Esta é a tua estranha maneira de definires uma visita a um qualquer amigo. Que no meu caso teria que ser 'amiga' porque senão a conversa descambaria para outros níveis de ofensa dado que, para ti, uma amizade heterogénea é coisa que não existe nem nunca vai existir.

MAS... ontem já não fazias parte da minha vida e eu tive a coragem de me meter no carro, e fazer 120km, só para estar com amigos, para curtir o bulício das ruas da cosmopolita vila de Cascais em dia de concerto do Rui Veloso.

Jantámos as quatro meninas num café de tapas. 
Tapas! Daquelas que íamos curtir sozinhos, sem qualquer possibilidade de convidar nem sequer a amiga que, antes de viver contigo, ia comigo a esses encantos de Badajoz. "Não, porque três é uma multidão e ficaria confuso andar pelas ruas com duas mulheres, as conversas não seriam fluentes".

Mas ontem éramos quatro e confirmei que a conversa era fluentíssima e que contámos coisas importantes da nossa vida umas às outras! E nenhuma das quatro se sentiu com a privacidade invadida. Falámos dos projectos porque lutamos no momento, uns profissionais outros apenas hobbies, ilustrados com fotos carinhosamente guardadas nos telemovéis-secretários.

Apesar do barulho, da confusão, do som superelevado do concerto do Rui Veloso, o prazer da partilha aconteceu.

Por volta da meia-noite fiz os 120km de volta, recusando as insistências do convite para ficar com elas. De facto não tinha ido preparada com o indispensável mínimo de objectos para aceitar um convite desses. Antes de ti, fazia sempre parte do meu desarrumado porta bagagens um saco com o trivial para ficar em casa de alguém, se tal se proporcionasse!

Hei de recuperar. também, esse bom hábito: tenho que dar tempo a mim mesma!

Mas fiz bem voltar para casa porque os meus três 'quatro patas' (cadela, cão e gata) estavam carinhosamente à minha espera! Gosto deles. Gosto de animais.

Mas, sobretudo, em oposição ao que tu afirmas de ti mesmo, fazendo uma cara que ronda o asco, 'não gosto de pessoas' (o que sempre me deixou boquiaberta de impressionada) : EU GOSTO DE PESSOAS!

Sem ti, vivi muito bem esta noite memorável!

Ser controlador dá trabalho!

Viver com um homem controlador, possessivo, manipulador e ciumento dá uma trabalheira dos diabos, acreditem!

É claro que eu já tinha ouvido falar da existência de pessoas assim, mas... quando nos cruzamos cara a cara com uma delas, e ainda por cima, começamos a viver juntos, ficamos completamente abismados. Como é possível alguém ser assim?

Com os meus 59 anos bem recheados de atribulações bizarras, dessas que só acontecem aos outros, eu, na minha ignorância, acreditava que já tinha visto e vivido tudo. Mas não! A minha convicção estava completamente errada!